Compreensão pública da ciência

As 10 questões de Eberlin

Representação de Deucalião e Pirra após o dilúvio (mito grego). Ambos estão lançando pedras por sobre os ombros, seguindo recomendação do oráculo de Têmis. Cada pedra lançada por Deucalião gerou um novo homem e por Pirra uma nova mulher. Extinção por afogamento, pessoas surgindo do barro! Acaso soa familiar?

Decepcionado com o comportamento do ser humano, o senhor de todos os Deuses resolveu inundar a Terra com um dilúvio. Apenas o último homem e mulher justos e bons sobreviveram para repovoar o planeta. Assim começa a saga de Noé! ou não! Na verdade esta é a história de Deucalião, filho de Prometeu. Este último tinha o dom da vidência, profecia ou algo assim, e avisou seu filho Deucalião que Zeus estava meio chateado com a humanidade e tinha encomendado um dilúvio para exterminar geral. Deucalião, homem precavido, construiu uma arca e se salvou com a esposa, Pirra. A única diferença relevante entre os dois mitos (Deucalião e Noé) é a presença ou ausência de pet shop na arca.

O professor Marcos N. Eberlin publicou no YouTube a palestra “Noé, a Arca, os Dinossauros e o Dilúvio: Fato ou Boato?” onde julga ter 10 evidências de que o Dilúvio, tal como consta na Bíblia, que inundou o mundo inteiro, aconteceu. Que o bom e justo Noé construiu a maior arca possível para abrigar todas as espécies de animais existentes no planeta e mais, que os dinossauros estavam dentro dela!

Não preciso mencionar o quanto essa discussão é absurda. A melhor forma de responder a esse tipo de tragicomédia acadêmica é como fez há anos o humorista Márcio Américo. O único motivo para eu estar a escrever um post sobre o assunto é a envergadura do sujeito envolvido. O Dr. Eberlin é um membro altamente premiado da Academia Brasileira de Ciências. Pessoalmente, tomei conhecimento da existência do Dr. Eberlin pelo seu campo de atuação. Ele preside a Sociedade Internacional de Espectrometria de Massas e é vice-presidente da Sociedade Brasileira de Espectrometria de Massas. Li algumas de suas publicações quando comecei a trabalhar com proteômica durante o mestrado. Até o momento, publicou mais de 800 artigos em revistas indexadas e há até uma reação que recebeu seu nome, reação de Eberlin! É no mínimo alguém que você para pra escutar o que tem a dizer.

Quando ouço o pronunciamento de cientistas sobre suas inclinações religiosas não penso que isso cause algum espanto ou desperte a ira da academia. Geralmente, eles não estão interessados em oferecer evidências sobre suas crenças. Afinal, este é o ofício da fé: crer sem a necessidade de evidências. Embora a ideia de acreditar sem o direito de questionar ou exigir alguma evidência não me agrade, respeito a posição de quem se satisfaz com isso. Sazonalmente, contudo, surgem alguns cientistas que, após obterem alguma notoriedade, tiram proveito disso para sustentar o velho proselitismo religioso tagarelando que a ciência prova isso ou aquilo sobre Deus ou histórias Bíblicas. O último notável que se aventurou por esses caminhos foi o bioquímico Michael Behe. Chegou a escrever um livro defendendo o Design Inteligente (DI) intitulado “A caixa preta de Darwin.” No livro, Behe defende o velho argumento da complexidade irredutível, reclama que eventos tão complexos como a cascata de coagulação ou a estrutura de um flagelo bacteriano não poderiam ter surgido de maneira gradual, a despeito da enxurrada de artigos científicos publicados explicando detalhadamente os eventos. [1][2][3][4][5][6][7][8][9]

The three stooges!

O Brasil não gosta de ficar para trás, especialmente nos maus exemplos. Não demorou a surgir um trio de criacionistas para fazer o papel de chatos por aqui. O primeiro sobre quem tive conhecimento foi o físico Adauto Lourenço, com o argumento derivado da teoria da informação. Fundamentalmente, ele reclama coisas como não surge ordem do caos, a informação não surge sem uma fonte inteligente, etc. Depois o geólogo Nahor Neves que não aceita as evidencias fósseis e, finalmente, o químico Marcos Eberlin que tenta ser a panaceia. Ao que tudo indica, Eberlin teve sua iniciação na instituição brasileira que mais investe tempo e recurso discutindo o sexo dos anjos, a Universidade Presbiteriana Mackenzie. Segundo o próprio Eberlin, ele iniciou sua militância no DI por perceber a “urgência de vozes com autoridade científica para restaurar a verdade.

Na palestra mencionada no inicio deste post, Eberlin começa seu discurso criticando o filme “Noé” que retratou a figura Bíblica como um homem autoritário e mau. Ignorando o aviso que dizia “obra de ficção” na resenha do filme, Eberlin mal começa o discurso e já se compromete: “A gente conhece que Noé era um homem justo e bom que andava com Deus” diz Eberlin. Naturalmente, cabe a pergunta ‘como você conhece alguma coisa?’ ou ‘de onde vem seu conhecimento sobre o caso?’ Bem, segundo o próprio Eberlin, ele admite o texto bíblico como uma evidência válida. Apenas isso! Ignoremos o fato de ele estar tentando desmistificar uma obra declaradamente de ficção. Revelando-se um criacionista do século XIX, Eberlin prossegue: “Todas as evidências mostram que sim, essa catástrofe da inundação global aconteceu. Foi no mundo inteiro sim […]. A gente nunca vai conseguir provar. Ninguém esteve lá, não há registros, não há fotos, […].” Uma vez mais cabe a pergunta, que evidências são essas? Se elas existem e são tão boas assim, porque diabos não se pode provar?

Eberlin explica que seu script para a palestra segue 10 perguntas. Em seguida apresentamos e comentamos todas elas.

1. Como todos os animais chegaram até a Arca?

Eberlin repreende “é uma questão que desconhece um aspecto muito importante do nosso planeta.” O tal aspecto é a ideia de que todos os continentes já foram unidos em um único supercontinente chamado Pangea. Brevemente, a ideia de Pangea está fundamentada em evidências como o aparente encaixe, reservadas as proporções e desastres naturais ocorridos, entre as costas dos continentes, o registro fóssil de espécies similares encontrados em continentes diferentes, fragmentos de rochas com estrutura e composição similares espalhados pelos continentes, dinâmica do movimento das placas tectônicas e a continuidade das cadeias de montanhas entre continentes. É, a ideia de Pangea é plausível, o único detalhe que Eberlin esqueceu de mencionar foi que a Pangea começou a se separar há ~100 milhões de anos e não há 6 mil anos (a idade que criacionistas da Terra jovem acreditam que a Terra possui). Para discutir no mesmo nível deveríamos dizer a Eberlin que não havia carpintaria nessa época ainda! Uma pequena gafe, mas não para por aí.

“Então há evidências muito fortes de que realmente não havia necessidade de canguru ter asas pra ter chegado na arca. Eles apenas precisariam se deslocar. Inclusive, por pequenas distâncias. Acredita que havia uma distribuição de todas as espécies, quase que a mesma por todo esse continente. Então não havia locais específicos para espécies específicas como nós temos hoje. O clima no planeta Terra era muito mais homogêneo do que ele é hoje. […] Eles [animais] foram andando. Grande distâncias? provavelmente não. Se a distribuição era homogênea eles foram ali do ladinho!”

A Pangea não constitui explicação alguma para como animais esquisitos teriam chegado à arca. E dizer que um supercontinente ilustra que animais se deslocariam por pequenas distâncias é, para dizer o mínimo, ridicularizar o intelecto da audiência. Em seguida Eberlin dá uma demonstração escrachada de sua ignorância sobre biologia básica. Não faz o menor sentido falar de uma distribuição homogênea de todas as espécies pelo mundo. Um ecólogo que ouvisse isso, primeiro daria risadas, depois ficaria preocupado quando soubesse de quem veio a abobrinha. Estudiosos de ecologia gastam grandes recortes de tempo e esforço para medir a distribuição de espécies dentro de uma única floresta e, geralmente, mostram distribuições diferenciadas dentro de áreas que nem por exagero se comparariam à Pangea. Certamente, Eberlin nunca leu um artigo de ecologia. Ele ficaria surpreso em saber que algumas plantas só crescem em solos específicos, que alguns animais de grande porte possuem dieta seletiva e que, mesmo considerando apenas um Estado pequeno como São Paulo, a distribuição da fauna e flora são extremamente variadas. O clima na Pangea podia até ser mais homogêneo que atualmente, mas o fato de os continentes estarem unidos não significa que a Terra deixaria de ter meridianos, equador e pólos. Está claro como água que Eberlin não entende a biodiversidade. Experimente manter um casal de ursos polares no equador por duas semanas!

2. Havia espaço?

Aqui Eberlin atinge o ápice ao fazer comparações entre Titanic, navios de exploração e a arca. A arca tinha mais acomodações, diz ele. O cara realmente assume que o tal navio existiu e tem até as medidas exatas! Não satisfeito, apresenta um cálculo de quantas espécies cabiam na arca assumindo que o tamanho médio de todos os animais do planeta é o de uma ovelha e conclui que a tal arca acomodaria 18 mil espécies em um terço do navio. Ah se Eberlin soubesse que, somente entre insetos, taxonomistas já catalogaram mais de um milhão de espécies e estimam existir ~18 milhões. Segundo Eberlin “se você tirar a média de todos os animais que habitam esse planeta, a média é o tamanho de uma ovelha.” Provavelmente Eberlin deve ter uma definição própria de “animal” diferente daquela dos taxonomistas.

Eberlin ignora que nem mesmo hoje temos uma definição ótima de espécie. É claro, ele não entende conceitos fundamentais da biologia. Os cálculos que apresenta relativos a quantidades de espécies são mais um amontoado de abobrinhas. Não fazemos ideia de quantas espécies de animais há no planeta. Todos os dias alguma espécie nova de réptil, ave ou inseto é catalogada, outras são reposicionadas em grupos distintos. Mas parece que Noé também era um ótimo taxonomista para identificar de tal maneira precisa todas as espécies como nem mesmo nossos melhores taxonomistas atualmente são capazes de fazer. Eberlin, considerando seus 18 mil casais de animais do tamanho de ovelhas, conclui que “havia espaço e espaço de sobra.” Não satisfeito, Eberlin diz que cálculos precisos e conservadores foram feitos (por quem e como?) para demonstrar que todos os casais de animais do planeta caberiam num trem com 37 vagões. Poderíamos parar por aqui para evitar a fadiga, mas sigamos com as respostas medonhas.

3. Os dinossauros também?

Importa mencionar que a palestra, aparentemente, ocorre dentro de uma igreja. Eberlin pede que levantem a mão aqueles que não acreditam que dinossauros estariam na arca. Curiosamente, a maioria das pessoas no salão ergue a mão. Eberlin chama a atenção “gente, pasmem, estavam!” Para entender as motivações de Eberlin para achar que deveriam haver dinossauros na tal arca é preciso atentar para o discurso:

Se a gente vai entender o relato Bíblico como digno de confiança, a gente tem que entender que lá está escrito que foi um casal de TODAS as espécies. […] Então se a gente vai realmente confiar no relato Bíblico sobre o dilúvio, a gente tem que colocar o dinossauro dentro da arca.”

Uma vez que sua interpretação é literal (século XIX) ele prefere encontrar algum artifício para sustentar a defesa bíblica que assumir que quem escreveu os evangelhos canonizados na Bíblia desconhecia a existência desses animais. Baseando-se apenas na informação sobre o registro fóssil das espécies encontradas até o momento, Eberlin diz que haviam 58 espécies de dinossauros para colocar na arca. Mais uma para o saco de abobrinhas! Ignora completamente que a descoberta de um fóssil é um evento mais acidental e repleto de contingências que qualquer outra atividade de busca. A única postura honesta (que um cientista respeitável deve mostrar) sobre o número de espécies de dinossauros que já caminharam sobre a Terra seria dizer um categórico não sabemos.

Eberlin tenta argumentar seriamente quando fala da extinção dos dinossauros. Naturalmente, ele critica a visão de que tenham sido extintos há 60 milhões de anos. Para tentar convencer a audiência, Eberlin finalmente fala sobre algo de que tem conhecimento, proteômica! Relata o polêmico trabalho da pesquisadora Mary H. Schweitzer. Um trabalho sério, mas cheio de crítica. Mary usou espectrometria de massas para sequenciar eventuais proteínas que estivessem num osso retirado da escavação paleontológica. Segundo o trabalho publicado na prestigiada revista Science, foram encontrados fragmentos de hemoglobina e colágeno. Eberlin comete exageros propositais. Os autores do trabalho dizem que o material é consistente com um material do Cretáceo.

Convém falar a verdade sobre o trabalho. A investigação foi conduzida com bastante cuidado, mas os resultados permanecem controversos. Menos de um ano após a publicação, um outro grupo independente tentou reproduzir os achados com o mesmo conjunto de dados de espectrometria de massas. Foram usadas amostras do osso e do ambiente em torno dele para prever contaminação ambiental. Os resultados mostraram que as amostras continham contaminantes comuns de laboratório, de bactérias  do solo e fragmentos de hemoglobina e colágeno similares aos de aves.

Uma coisa que aprendi cedo nessa carreira acadêmica é que se você encontra um resultado que não encaixa muito bem com os modelos consolidados, as chances de isso ser um artefato de preparação são sempre maiores que as de você estar prestes a ganhar o Nobel. Pode parecer meio deprimente, mas é assim que funciona. Quem não lembra do caso da pesquisadora Felisa Wolfe-Simon? Recordar é viver: o grupo de Felisa publicou o primeiro e único relato de uma bactéria extremófila capaz de usar arsênio em lugar do fósforo para compor o DNA, também na prestigiada revista Science. Foi uma grande polêmica. Todos na comunidade científica achavam que Felisa havia contaminado as amostras acidentalmente, durante o preparo, e havia mesmo! Encontraram traços de arsênio em todo lugar no laboratório onde ela conduzia os experimentos. Mais tarde, toda a história foi esclarecida revelando que a bactéria possui grande resistência ao arsênio presente no ambiente. Felisa não ganhou o Nobel, o DNA continua contendo fósforo e os artefatos de preparação ainda são muito comuns, e olha que ela trabalhava nos laboratórios da NASA.

Mais uma indicação de que o proteôma dos dinossauros de Eberlin são controversos é a anotação do GenBank com o nome ‘hipotético DNA genômico de dinossauro, sequência parcial.’ Os próprios autores alertam:

“A sequência foi originalmente descrita como DNA de dinossauro, mas não foi encontrada homologia significante com qualquer sequência no banco de dados. Não existe forte evidência em favor da autenticidade da origem antiga.”

Se fizermos um alinhamento da sequência anotada como DNA de dinossauro usando uma ferramenta apropriada (BLAST), observamos que os maiores hits são todos com a bactéria E. coli sugerindo que pode não passar de mais uma contaminação com material do ambiente. Para fazer você mesmo o alinhamento basta copiar a sequência de nucleotídeos anotada no GenBank (U41319.1) e colar na busca do BLAST.

Para fechar esta seção com chave de ouro, Eberlin acredita que os dragões retratados na mitologia chinesa eram dinossauros e que o monstro do lago Ness existe mesmo e é o último dos dinossauros. Finalmente, que a era do gelo ocorreu logo após o dilúvio matando os dinossauros de fome e frio. Mesmo para um filme de ficção, este roteiro seria medonho!

4. A arca flutuaria, carregada?

Novamente, invocando os cálculos ultra-precisos de fontes ignoradas, Eberlin sustenta que a arca foi construída para flutuar somente com um peso específico e que o número de espécies ali dentro era o balanço ideal e Noé sabia disso. De fato, é preciso colocar algum elemento de magia para acreditar nessa história.

5. De onde veio tanta água?

Segundo Eberlin, “A água veio de cima porque essa canopla de água se condensou e, pela primeira vez nesse planeta, choveu.” e veio de baixo porque ele acredita que a água confinada a 600 Km nas profundezas da Terra subiu! Cabe a pergunta: ‘como Noé e seu povo alimentavam-se?’ Pela explicação de Eberlin, a agricultura não era um modelo muito privilegiado por aqueles tempos. Afinal, nuca havia chovido. Além do mais, recorrentemente, ele faz referência à atmosfera da Terra como se Noé vivesse na Pangea há 100 milhões de anos. Seu argumento para que a água cobrisse toda a superfície da Terra é que não haviam montanhas ou montes na Pangea. Mero achismo! Absolutamente, nada autoriza a conclusão de que as placas tectônicas estavam estáticas para não formar montes ou montanhas. Pelo contrário, elas estavam se separando, se movendo Eberlin!

6. A atmosfera da Terra era a mesma de hoje?

Esta argumentação mostra a confusão conceitual que Eberlin cria para si mesmo. Ele fala sobre material conservado em âmbar: “junto com esse âmbares são encontrados também pequenas gotículas de ar […] tem âmbares que são datados de milhões de anos.” Relata outro experimento com espectrometria de massas que foi conduzido para analisar a composição do ar confinado em cristais de âmbar antigos usando âmbar moderno como controle. O estudo foi conduzido por Gary Landis e Robert Berner que encontraram concentrações muito maiores de oxigênio no ar confinado em âmbar antigo, sugerindo que a atmosfera já foi mais oxigenada. Novamente, talvez propositalmente, Eberlin esquece de mencionar as datas. O âmbar antigo analisado pela equipe de Berner em 1987 datava de 80 milhões de anos, no Cretáceo. Segundo Eberlin, era nesse período que vivia Noé com sua família sem agricultura, pois não havia chuva e todos eram muito saudáveis porque havia muito oxigênio. É possível que Eberlin jamais tenha entrado em uma sala de UTI e visto um ventilador mecânico funcionando. Aqueles que mantém pessoas respirando artificialmente. O fato é que se você eleva as concentrações de oxigênio no aparelho, células pulmonares são literalmente torradas e o paciente pode morrer. Eberlin também desconhece a terapia hiperbárica que cita na tentativa de mostrar que uma atmosfera com muito mais oxigênio seria benéfica. O que Eberlin não sabe é que durante cada ciclo do paciente dentro da câmara hiperbárica é necessário fazer pausas periódicas de ~20 minutos tomando ar do ambiente para reduzir os efeitos tóxicos do oxigênio. Para um químico, faltou lembrar do clichê estresse oxidativo.

7. Datação com 14C afetada?

Eberlin é categórico “se houve um dilúvio, jogue todas as datações de carbono 14 no lixo.” Em seguida esclarece os motivos para acreditar nisso “Por quê que eu posso falar isso? Porque eu sou espectrometrista de massas, eu sei como funciona. Eu fui ver uma palestra uma vez sobre como funciona carbono 14. É um equipamento específico, ele mede um sinal que é 10e-12 de intensidade em relação ao original. Quem tem um pouco de conhecimento sobre química analítica, sabe que não dá pra você medir […] sem ter imprecisões ali.

O discurso é falacioso. Digo isso porque Eberlin se aproveita da inabilidade da audiência com este tipo de análise e simplesmente omite os detalhes técnicos. Intensidades de sinal muito baixas podem ser amplificadas sem maiores dificuldades em termos instrumentais, desde que saibamos o que estamos procurando e tenhamos métodos para discernir ruído de sinal. Pra falar a verdade, a escala de comparação nem é a mesma se olharmos para as coisas que Eberlin estuda. Ele menciona o conhecimento da química analítica, mas talvez fosse mais apropriado falar com um físico sobre tentar comparar padrões de fragmentação de peptídeos ou moléculas orgânicas e átomos! É como comparar um planeta com uma bola de bilhar usando a mesma régua. Eberlin acha que não é possível medir carbono 14, mas um equipamento do tipo IonTrap, nem é o padrão ouro do mercado, consegue detectar muito bem o sinal do ânion fluoranteno (202 m/z) e do carbânion fluoranteno (203 m/z) considerando uma proporção de 17,4% de carbono 13 (especificação do instrumento AmaZon ETD, Bruker). Toda medida carrega algum grau de  imprecisão.

Há mais problemas com essa argumentação de Eberlin. Qual o motivo para ele estar preocupado com o carbono 14? Bem, ele quer fazer parecer que esse método de datação não é confiável e que, por isso, a idade dos registros fósseis está errada. O absurdo dessa defesa é que, em primeiro lugar, muitos registros fósseis são completamente mineralizados. O que isso quer dizer? Que a matéria orgânica ali foi substituída por metais. Nenhum pesquisador sério seria tolo o suficiente para tentar datar este tipo de amostra pela proporção de carbono 14. O motivo? Não há carbono na peça mineralizada! Finalmente, Eberlin erra nos exemplos para confundir a audiência como segue “Por isso que fazem essas datações com carbono 14 e dá milhões de anos […] o santo sudário dá 500 mil […].

O carbono 14 tem meia-vida de 5.730 anos e, por isso, as datações são feitas com confiança apenas para registros de até ~62 mil anos. Mas é claro que todo químico sabe disso, menos Eberlin (ou devemos assumir que ele foi desonesto?). Eberlin faz parecer que este tipo de datação é o único método usado para determinação de registros fósseis. Pra falar a verdade, não é nem o mais usual quando o interesse é estimar a idade de um registro fóssil, já que muitos tem, como ele próprio menciona, milhões de anos. Existem muitos outros métodos de datação radiométrica usados para este fim, tais como potássio 40 (meia-vida de 1,3 bilhões de anos) e rubídio 80 (meia-vida de 50 bilhões de anos), para termos alguns exemplos honestos.

8. O registro fóssil não contradiz o diluvio?

Quem defende o dilúvio […] defende a formação muito rápida, abrupta do registro fóssil.” Novamente o que está em disputa na argumentação de Eberlin é a datação. Ele não acredita que o processo de fossilização seja um evento lento e gradual. Isto não seria consistente com o mito de Noé! Talvez Eberlin queira explicar sua teoria sobre a formação de fósseis a pesquisadores como Peter Sheehan ou ao grupo de Robert Hazen que escreveram trabalhos bem completos sobre o assunto. Se você quer saber sobre fósseis, pergunte a pessoas que entendam do assunto. Você encontra boas explicações simples nas páginas do Museu de História Natural de San Diego e no Museu Australiano ou nos artigos dos grupos mencionados aqui, como o de Laura Hug.

9. Gigantes pré-diluvianos?

Sem novidades, Eberlin apenas volta a falar sobre a atmosfera rica em oxigênio que já existiu neste planeta. De fato, há trabalhos que mostram que a complexidade dos organismos aumentou com a elevação das taxas de oxigênio na atmosfera. Mas é importante notar que complexidade e tamanho nem sempre correlacionam tão bem. Eberlin mostra um inseto similar a uma libélula (que ele chama de Louva-a-Deus – show de biologia). O inseto que Eberlin queria mostrar chama-se Meganeura monyi e viveu há cerca de 300 milhões de anos. No fim das contas, Eberlin só não quer admitir que a Terra seja tão velha quanto todos os outros cientistas do mundo (ou pelo meno 99% deles) acreditam ser. Estampado no mural de vidro do laboratório do Dr. Eberlin, há um adesivo enorme que denuncia “Não tenho ancestral símio – Sou filho do Deus criador.”

10. Por que vivemos menos depois do dilúvio?

Primeiro é preciso assumir que houve o tal dilúvio, depois é preciso delimitar temporalmente o evento e, por fim, é preciso admitir que realmente existe alguma estatística do tipo curva de sobrevivência comparando o período pré-dilúvio com o pós-dilúvio. Estas condições são necessárias para aceitar a pergunta. Agora fica fácil entender porque o próprio Eberlin admitiu que “A gente nunca vai conseguir provar.

Assumindo que tudo isso seja fato, Eberlin pergunta: “Por quê que antes do dilúvio vivíamos muito mais e agora muito menos?” em seguida responde “Porque a atmosfera do planeta era muito diferente.” Ele diz que a canopla de vapor d’água existente na Pangea nos protegia da radiação ultravioleta e, por conseguinte, das mutações. Há mais de 100 milhões de anos? isso é sério mesmo? Não existia câncer? Não é bem por aí a história. A comunidade científica acredita que células tumorais (imortalizadas) existem há centenas de milhares de anos e tem moldado a evolução de alguma forma, isso bem antes dos primeiros Homo sapiens andarem por aí. Eberlin ficaria surpreso em saber que foi diagnosticado câncer de próstata em uma múmia egípcia que morreu há 2.250 anos e em um esqueleto russo de 2.700 anos.

Eberlin acredita que a mais alta taxa de oxigênio existente há 80 milhões de anos era fundamental. “A gente vivia naquela ‘câmera’ hiperbárica,” diz ele. Podia ter aproveitado a ‘câmera’ pra registrar uma foto da arca! Novamente, ignora os efeitos da exposição prolongada a elevadas concentrações de oxigênio. No mundo de Eberlin não há estresse oxidativo, altas concentrações de oxigênio por tempo prolongado não matam células em cultura ou queimam os alvéolos de pacientes em UTI. Sobre as mudanças climáticas, Eberlin diz “Nós temos um planeta muito mais hostil. A temperatura varia muito mais. Tem partes do planeta com temperaturas altíssimas outras são congelantes.” Isto resume bem sua visão da Terra jovem. Ele realmente acredita que o planeta não tinha pólos, meridianos ou equador!

Eberlin acredita que após o tal dilúvio apenas um casal sobreviveu, Noé e sua esposa. Que eles repovoaram o planeta e que as doenças genéticas que temos hoje são derivadas dos laços co-sanguíneos compartilhados pelos filhos de Noé. Não é preciso dizer o quanto esse pensamento é esdruxulo. Segundo o conto bíblico (Gênesis 9:28-29), Noé teria sido o 10° e último dos patriarcas. Teria morrido aos 950 anos. Se fossemos desprovidos de discernimento suficiente para aceitar isso como verdadeiro, ainda assim a descrição bíblica estaria em desacordo com a proposição de Eberiln de que se vivia muito mais no período pré-diluviano. Afinal, se Noé era apenas o 10° patriarca, ou a Terra tinha umas poucas dúzias de habitantes (pra dar estatística) ou essa história está muito mal contada.

No que acreditamos faz alguma diferença para a natureza?

Eberlin é sem sombra de dúvida um grande pesquisador, um dos maiores na área de espectrometria de massas e, por isso, merece consideração. Falta-lhe, no entanto, leitura sobre metafísica e, essencialmente, sobre temas diversificados da ciência básica. Não costumo perder tempo discutindo o sexo dos anjos, como fiz neste post, mas Eberlin não é uma figura como Nahor ou Adalto. Eberlin é expressivo, influente e isso preocupa. Honestamente, sua argumentação tem um nível muito inferior ao dos habituais defensores do criacionismo. O que se vê é um homem tremulo e com uma leitura desconcertante defendendo um ponto de vista absolutamente insustentável. Contudo, pela influência, tem encontrado espaço dentro da academia para promover o proselitismo religioso travestido de péssimo debate científico. A academia e as sociedades científicas brasileiras precisam estar atentas a isso. Afinal de contas, Eberlin está disposto a usar sua autoridade científica para defender o ensino do criacionismo na educação brasileira.

What?

Finalmente, para ser claro, pouco importa o que Eberlin acha sobre evolução, genética ou biologia de modo geral. Ele não tem expertise em qualquer destes campos. Se eu, você ou Eberlin acreditamos em fenômenos como a gravidade ou a evolução pouco importa. Dizer que não acredita na teoria celular, por exemplo, não faz de você um indivíduo desprovido de células. A natureza é indiferente ao achismo! O que parece mesmo é que Eberlin está entediado no fim da carreira e resolveu embarcar em alguma aventura que o pusesse em evidência. Uma constatação óbvia é que o manto de cientista que carrega aos poucos está se deteriorando.

Referências

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10 pensamentos sobre “As 10 questões de Eberlin

  1. Esse seu “artigo” é no mínimo cômico! Tens que ter uma fé descomunal para crer em suas afirmações e críticas, as falácias creditadas a seus argumentos se confirmam no próprio contexto, críticas sem mérito próprio, ironias em cima de um tema que vem pautando fatos relevantes e colocando em chek teorias que se provaram ao longo dos tempos completamente inapropriadas, só lhe peço faça pesquisas de cunho imparcial aí volte a publicar.

    • Caro Dimitri, este post oferece o único tratamento que os argumentos criacionistas merecem, a ironia. Considero uma completa perda de tempo discutir com seriedade assuntos que nada tem de sérios. Você quer falar de pesquisa? faça uma busca no PubMed usando os unitermos “molecular evolution,” “coagulation cascade” ou “horizontal gene transfer,” só para citar poucos exemplos!

    • Que fatos relevantes? Eu lhe peço para ir ler a Bíblia e parar de dar opinião no que não entende… este texto não só é bem escrito como trás todas as referências que faltam no discurso bitolado do falso profeta da pseudo-ciência do DI… seu comentário é trágico….

  2. Como foi destacado, Marcos Eberlin é um cientista sério e renomado. Acho um erro, no entanto, considerar uma palestra dele em uma igreja como um risco a ciência. Ele estava lá expondo os seus “achismos” e objeções a respeito de assuntos que não são sua área de formação. Algo natural, pois como sociedade devemos e podemos discutir os mais diversos temas com base na lógica. Além disso, a ciência é extremamente segmentada, muitas vezes só encontramos espaço para discutir o conhecimento geral e suas implicações em espaços informais e não-científicos. Marcos Eberlin, portanto, não falou a partir de uma cátedra científica, como em um artigo científico, mas tratou de suas objeções pessoais em espaço não-científico.
    Todo cientista deveria fazer o mesmo, não necessariamente em uma igreja. Punir moralmente o cientista que, fora de sua atuação profissional, discute temas gerais é um exagero.
    Até porque todo cientista é apenas “cientista” em sua área. Nas demais áreas, ele recorre a autoridade de outros cientistas e/ou conselhos científicos. Há, portanto, um aspecto de “fé”, quando se crê sem que você mesmo tenha estudado e observado os eventos. Portanto, fora do seu campo de pesquisa, um cientista só pode ocupar duas posições: a de crente ou de cético.

    • É um perio sim Lílian, pois ele usa a sua autoridade em Química para falar construir uma autoridade para falar de coisas que não conhece… isso uilude muita gente, que acha que ele está falando a verdade…

  3. Eu sou um cristão e acredito que a Bíblia é a Palavra de Deus. Para mim, a partir do momento em que descobri que a coisa mais relevante se cumpriu na minha pessoa ( não vou e nem é preciso entrar em detalhes aqui) todas as outras coisas se tornam secundárias. Não vejo necessidade de um cristão querer provar o quê não pode ser provado e de entrar em debates que só depreciam os ensinamentos bíblicos. O autor deste texto é infinitamente mais honesto e coerente em seu raciocínio do que o senhor Eberlin com suas fantasiosas explicações… O consolo que tenho é que sei que o Deus em quem acredito usou uma metodologia singular para expor o Seu pensamento. E, provavelmente, Ele deve ficar estupefato com tantas explicações que pessoas que acreditam Nele estão dando por aí!

  4. Você diz tanto no texto sobre a formação acadêmica dele que comete o mesmo erro pelo menos 3 vezes em seu artigo.

    Acesse qualquer site sobre paleontologia/geologia e veja que a formação de fósseis é necessariamente um evento RÁPIDO. Fósseis não se formam de forma lenta e gradual. Você errou completamente no 8º item.
    http://www.cprm.gov.br/publique/Redes-Institucionais/Rede-de-Bibliotecas—Rede-Ametista/Canal-Escola/O-que-sao-e-como-se-formam-os-fosseis%3F-1048.html
    A grande discussão sobre o assunto não é como fósseis se formam e sim sobre a datação e o contexto em que eles se encontram nas rochas.

    E só pra contar, o fato da fossilização ser rápida não “prova” o dilúvio bíblico.

  5. A sociedade científica não é plural. Existe um consenso científico, só que algumas pessoas que tem formação científica se apegam a dogmas religiosos tão arraigadamente que perdem totalmente o discernimento crítico.

    • Nada mais dogmático do que um “consenso”, e todo consenso é burro. Parabéns por tornar pública sua ignorância. A ciência progride, justamente, quando consensos são destruídos. Sua postura é análoga aos fundamentalistas que você critica, os quais “perderam totalmente o discernimento crítico”. Ou você sofre de alguma espécie de paralaxe cognitiva, estando dissociado da realidade. Por que o seu fundamentalismo é válido para criticar o fundamentalismo de outrem? Viu só, apenas com raciocínio lógico pude desmascará-lo. Um abraço.

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