Compreensão pública da ciência

Forídeos da cultura

Forídeos (Pseudohypocera kerteszi) são insetos pequeninos. Mosquinhas ligeiras que podem representar o extermínio de uma colônia inteira de abelhas. A mosca adulta não causa outros problemas que não o inconveniente ato de tentar perpetuar seus genes. O problema é que a mosca põe suas larvas nos potes de alimento e de cria das abelhas. As larvas, em busca de nutrientes, se alimentam das crias e da comida das abelhas e com isso, eventualmente, matam toda a colônia.

Quando falamos sobre este tipo de relação, onde um produz o mal do outro, é comum projetarmos um cenário psicológico onde as abelhas são as mocinhas e o forídeo é o vilão. Sobre isto desejo apenas lembrar que não há intencionalidade no ato de parasitismo de forídeos com relação às abelhas. As larvas dos forídeos não agem deliberadamente para matar as colônias, mas para sobreviver. A diferença entre finalidade e consequência importa e é sobre isso que quero falar. Conforme mencionei, forídeos adultos não são um problema dado que já estão desenvolvidos e não precisam parasitar colônias para sobreviver, mas suas crias precisam se desenvolver e encontram nas colônias o ambiente perfeito para isso. Assim, embora a finalidade do ato de parasitismo seja tão somente sobreviver tempo suficiente para propagar os genes, a consequência não intencional é a destruição da colônia parasitada. Visto desta forma, não há vilões ou mocinhos, apenas interações ecológicas.

A esta altura você deve estar a se perguntar: por que diabos estou lendo sobre moscas e abelhas? Bem, além de algo instrutivo, penso que a relação entre os forídeos e as abelhas seja uma boa forma de representar algumas interações que mantemos em nossa cultura, especialmente a maneira como lidamos com o discurso científico. A ciência nos ensina a ver o mundo de maneira objetiva e algumas pessoas acreditam que isso possa reduzir a beleza da natureza a frios cálculos. Uma atitude frequentemente observada é o confronto das declarações de cientistas com discursos metafísicos ou poéticos.

Eduardo Galeano, por ocasião do lançamento de seu livro “Os filhos dos dias” disse “Os cientistas dizem que os humanos são feitos de átomos, mas a mim um passarinho contou que somos feitos de histórias.” Não vejo como ambas as visões possam ser mutuamente excludentes. Mais do que isso, não acredito que Galeano esteja verdadeiramente interessado em confrontar a visão de que nossos corpos são constituídos de átomos. Mas a frase tem efeito! e é frequentemente usada por terceiros com intuito de estigmatizar cientistas como apoéticos, seres incapazes de ver a beleza, positivistas ou qualquer coisa do tipo. Esta atitude tem o mesmo efeito de forídeos sobre uma colônia de abelhas, ou seja, sem nenhuma intencionalidade gera consequências desastrosas.

Leitores assimilam a ideia de que há algo a ser confrontado e é, certamente, a visão científica. Neste sentido, a frase de Galeano é um forídeo. Tal como o forídeo verdadeiro ele não tem a intenção de eliminar a ideia científica, mas tão somente se propagar. É uma unidade replicadora cultural, um meme! No entanto, ao tentar se desenvolver, a frase de Galeano começa a gerar danos à ideia científica. Não estou afirmando que as pessoas passarão a duvidar de que somos constituídos de átomos, mas que o confronto entre ideias que, em realidade são concordantes, confunde o público. É uma espécie de reforço ao desgosto pela ciência.

A ciência tem mostrado que o mundo natural é repleto de beleza e mistérios que instigam nossa curiosidade. Veja-se o caso do físico australiano que pediu sua companheira em casamento por meio de um artigo científico. O físico escreveu um artigo falando sobre as interações entre dois corpos ao longo do tempo e desenhou um gráfico de felicidade em função do tempo. Após contar a história do casal, o físico propõe:

“O resumo dos achados do estudo é apresentado na figura 1 (o gráfico de felicidade/tempo), e mostra que a felicidade projetada está crescendo com elevada confiança. Levando esses resultados em consideração, o autor propõe à Christie a indefinida continuidade do estudo. A resposta a esta proposta deve ser indicada a baixo: sim não.”

É possível ver poesia na ciência sem que para isso seja necessário invocar a ideia de que a poesia é ciência. Se assimilássemos ideias tais como as origens da vida ou do universo, evolução e biodiversidade, constituição do espaço e tantas outras com o mesmo entusiasmo que assimilamos as teorias da ficção ou uma poesia avançaríamos anos luz em nossa compreensão da natureza. Estou convencido de que saber mais sobre a natureza fará com que passemos a observar a verdadeira beleza contida nela. E isso, ah, isso é pura poesia!

Agradecimentos:

Ao professor Arley da Costa pelas valiosas sugestões ao texto e ao professor Sérgio Filho por certificar-me de que tratei as moscas da maneira adequada.

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Este texto de Alison Felipe Alencar Chaves, foi licenciado sob uma Licença Creative Commons Atribuição-NãoComercial-SemDerivados 3.0 Não Adaptada.

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